- Claire Johnson, 55, tinha diabetes e gordura no fígado, apesar de seus 54 quilos
Claire Walker Johnson vivia no Queens, em Nova York, e era um mistério
para a medicina. Não importa o quanto ela comesse, ela nunca ganhava
peso.
Entretanto, Claire, de rosto fino e delgado, tinha os
mesmos problemas enfrentados por muitas pessoas obesas – diabetes tipo
2, pressão sanguínea elevada, colesterol elevado e, o pior de tudo, um
fígado cheio de gordura.
Ela e um grupo muito pequeno de pessoas
magras deram pistas surpreendentes aos cientistas a respeito de uma das
principais questões sobre a obesidade: por que pessoas obesas muitas vezes desenvolvem doenças sérias e muitas vezes mortais?
A resposta, ao que tudo indica, tem muito pouco a ver com a gordura. Na
verdade, trata-se da capacidade de cada pessoa de armazenar essa
gordura. Com isso em mente, os cientistas começam agora a desenvolver
tratamentos que protejam às pessoas do excesso de gorduras não
armazenadas, livrando-as de problemas médicos complicados.
Além disso, entre 2% e 3% dos adultos norte-americanos, ou ao menos
cinco milhões de pessoas, possuem um grave acúmulo de gorduras no fígado
causado pela obesidade e que pode levar à falência hepática.
O
trabalho de detetive que levou a essa nova descoberta científica a
respeito da gordura começou com um pequeno grupo de cientistas curiosos
com uma doença que pode ser causada por uma mutação genética tão rara
que afetaria apenas uma em cada 10 milhões de pessoas, incluindo Claire.
Ser magra não parecia ser problema
Durante boa parte da vida, Claire, de 55 anos, não tinha ideia de que
algo estava faltando. É verdade que ela era muito magra e vivia com
fome, mas na Jamaica, onde nasceu, muitas crianças eram magras e ninguém
pensava muito a respeito disso, afirmou. Ela parecia saudável e se
desenvolveu normalmente durante a adolescência.
Depois de se
mudar para os Estados Unidos para fazer faculdade, ela foi ao médico
para examinar alguns calombos nos braços e se surpreendeu ao descobrir
que eram cristalização de colesterol no sangue. Seu nível de colesterol
era bastante alto.
Depois de realizar outros exames, ela
descobriu que tinha outros problemas relacionados a obesidade – um
fígado enorme e cheio de gordura, cistos nos ovários, níveis altíssimos
de triglicérides.
Seu médico ficou aturdido. Geralmente ele
deveria instruir o paciente a perder peso, mas isso não fazia sentido
neste caso. "Ele disse que não sabia o que fazer para me ajudar",
contou.
Ao final, ela foi ao consultório de uma
endocrinologista, a Dra. Maria New, que também não sabia o que fazer,
mas queria encontrar respostas. A médica tirou as medidas de Claire:
1,70 m. Pesou-a: 54 quilos.
Maria passou anos fazendo perguntas
sobre o caso de Claire a especialistas em todas as conferências médicas
às quais foi. Um dia, em 1996, estava dando uma palestra no Instituto
Nacional de Saúde e fez a pergunta de sempre: Alguém fazia ideia do que
poderia estar errado com a paciente?
O Dr. Simeon Taylor, que
era chefe do setor de diabetes do Instituto Nacional do Diabetes e
Doenças Digestivas e Renais, levantou-se. Ele tinha muitos pacientes
como Claire. O problema chamava-se lipodistrofia, afirmou, uma doença genética rara caracterizada por uma falta anormal de tecido adiposo.
Estudo começou como curiosidade
Taylor e seus colegas estavam estudando pessoas com esse tipo de
problema "como uma curiosidade", comentou o médico. Ele estava mais
interessado na resistência à insulina que causa o diabetes tipo 2, e
presumia que o problema fosse causado pela obesidade. Contudo, pessoas
com lipodistrofia tinham os casos mais graves de resistência à insulina
que ele já havia visto, embora estivessem longe de ser obesos.
Ele gostaria de dar início a um estudo envolvendo um novo medicamento,
uma versão sintética de um hormônio chamado leptina, que poderia ajudar
os pacientes. O estudo finalmente começou no ano 2000, com Claire entre
os primeiros participantes.
A leptina é liberada pelas células
adiposas e viaja pela corrente sanguínea até o cérebro. Quanto mais
gordura há no corpo de uma pessoa, mais leptina é liberada. Quando os
níveis são baixos, há pouca leptina no cérebro, que responde aumentando o
apetite da pessoa, o que a leva a comer mais e a ganhar peso. No caso
de pessoas como Claire, que praticamente não têm células adiposas para
enviar sinais ao cérebro, o órgão praticamente não recebe leptina. Para o
cérebro, é como se ela estivesse morrendo de fome. Como consequência, a
pessoa sente um desejo constante de comer.
Com o tratamento de
leptina, o cérebro de Claire passou a reagir como se ela tivesse níveis
altos de gordura. A fome insaciável desapareceu. A gordura desapareceu
do fígado, a glucose no sangue ficou normal, assim como os níveis de
colesterol e triglicérides.
Mas por que ela e outros pacientes
com lipodistrofia têm esse problema e porque ele acabou com o
tratamento? Afinal, o que aconteceu?
Qual o papel da gordura em problemas como diabetes?
Alguns estudos envolvendo cobaias ajudaram a dar novas pistas. O Dr.
Marc Reitman, chefe do departamento de Diabetes, Endocrinologia, e
Obesidade do Instituto Nacional de Diabetes e Doenças Digestivas e
Renais, ao lado do colega, Dr. Charles Vinson, do Instituto Nacional do
Câncer, alterou cobaias geneticamente para que elas tivessem
lipodistrofia. As cobaias, assim como Claire, praticamente não possuíam
tecido adiposo. E assim como ela, desenvolveram todas as condições
associadas à obesidade.
O que aconteceria, questionaram os pesquisadores, caso esses ratos tivessem um pouco mais de tecido adiposo?
Eles transplantaram tecido adiposo nos roedores e, duas semanas depois,
os animais apresentavam níveis normais de glucose, insulina e
triglicérides. Os fígados e músculos também voltaram ao normal.
Se
aquilo funcionou, questionaram os pesquisadores, qualquer quantidade de
gordura evitaria o surgimento da doença, mesmo quantidades altíssimas?
Philipp E. Scherer, diretor do Centro de Diabetes Touchstone, no Centro
Médico Southwestern, da Universidade do Texas, em Dallas, e seus
colegas testaram a ideia. Eles alteraram os ratos geneticamente para que
fossem capazes de acumular gorduras ilimitadamente. Segundo Scherer, os
animais eram "os ratos mais gordos da galáxia. Se fossem humanos,
teriam 400 quilos".
Entretanto, o metabolismo dos ratos era normal.
Agora, depois de anos de pesquisa, a situação ficou clara. E com isso,
surgiu um novo ponto de vista a respeito do papel da gordura na causa de
problemas médicos ligados à obesidade.
Por trás de todas essas
condições e da "síndrome metabólica" – ou seja, possuir ao menos três
condições associadas à obesidade – está uma capacidade inadequada de
armazenar gordura. (O Dr. C. Ronald Kahn, CCO da Clínica de Diabetes
Joslin, disse que dois médicos alemães afirmaram que a síndrome era
"metabólica" há quase 40 anos. Condições como níveis elevados de
colesterol, diabetes e até mesmo pressão sanguínea elevada parecem estar
ligados a problemas no metabolismo; neste caso, na incapacidade de
armazenar calorias).
O corpo transforma o alimento
excessivo em gordura e tenta armazená-lo no tecido adiposo. Quando não
há tecido o bastante, a gordura é armazenada nos outros órgãos, como
fígado e o coração, além dos músculos e do pâncreas. Nesses lugares, a
gordura envenena o corpo, causando a síndrome metabólica.
As pessoas obesas desenvolvem problemas metabólicos porque seu cérebro
ordena que elas comam mais que a capacidade do corpo de armazenar
gordura. O tecido adiposo já atingiu o limite. Pessoas com lipodistrofia
têm tão pouco tecido adiposo que também não conseguem armazenar a
gordura que seu corpo produz para guardar as calorias excessivas
oriundas dos alimentos consumidos.
Também é por isso que algumas
pessoas sentem que os problemas metabólicos melhoram até com uma
pequena perda de peso – elas comem menos e os tecidos adiposos conseguem
reagir melhor.
"As pessoas geralmente pensavam no tecido
adiposo como um depósito inerte, uma espécie de gosma branca amorfa",
afirmou o Dr. Sam Virtue da Universidade de Cambridge. Na verdade,
"trata-se de um órgão muito dinâmico".
Isso também
explica porque entre 10 e 20% das pessoas obesas não desenvolvem
quaisquer problemas metabólicos, afirmou Scherer. Esses obesos saudáveis
são como os ratos gordos do experimento, com uma habilidade incomum de
expandir o tecido adiposo para armazenar calorias.
Os
pesquisadores passaram para a nova fase da pesquisa, tentando
identificar o veneno presente na gordura que é responsável por causar
todos esses problemas e descobrir uma forma de bloqueá-lo.
Ao menos duas substâncias químicas parecem estar envolvidas.
Mas se não é a gordura, de quem é a culpa?
O Dr. Gerald I. Shulman, professor da faculdade de Medicina de Yale e
um dos diretores do Centro de Pesquisa do Diabetes, além de pesquisador
do Instituto de Medicina Howard Hughes, se concentrou no diacilglicerol,
produzido a partir dos ácidos graxos – feitos dos alimentos que uma
pessoa consome – e depositado em lugares como os músculos e o fígado, ao
invés do tecido adiposo. Com o diacilglicerol, revelou Shulman, a
insulina não consegue enviar sinais às células. O resultado é a
resistência à insulina e o diabetes tipo 2.
"O diacilglicerol é o
culpado", afirmou. Uma forma segura de se livrar dele no fígado e nas
células musculares é a perda de peso – de forma a parar de fornecer ao
corpo um volume maior de calorias do que o corpo é capaz de processar,
afirmou.
Isso não é nada fácil. "Sempre que atendo um paciente,
digo que é importante perder um pouco de peso e aumentar a atividade
física e todos respondem dizendo que sim, que é uma ótima ideia. Talvez
um a cada 100 realmente faça isso e mesmo quando são bem sucedidos,
sabemos como é fácil recuperar o peso."
Shulman está explorando
outra rota possível, desenvolvendo novas variedades benignas de uma
substância tóxica que ele espera ser capaz de ajudar a reduzir os níveis
de gordura e de inflamação no fígado. O medicamento, o dinitrofenol,
foi utilizado durante muito tempo para ajudar na perda de peso, mas o
FDA o tirou do mercado em 1938 depois que algumas pessoas morreram
repentinamente vítimas de pressão sanguínea elevada.
Ele e seus
colegas modificaram o funcionamento do dinitrofenol para que, ao menos
em testes com cobaias, a substância não eleve a temperatura corporal,
nem cause perda de peso. Entretanto, o produto é capaz de diminuir os
níveis de diacilglicerol no fígado, de curar o diabetes tipo 2 e de
diminuir a presença de gordura no fígado, além de resolver outros
problemas metabólicos associados à obesidade.
O problema é
desenvolver o medicamento em seres humanos. Alguém gostaria de
participar de um ensaio clínico que utiliza uma variante de um
medicamente que originalmente tinha efeitos colaterais potencialmente
fatais?
"Trata-se de uma prova de conceito. Realmente acredito que seja um passo à frente", afirmou Shulman.
Outras pessoas estão se concentrando em outros tipos de compostos
químicos, conhecidos como ceramidas. Scherer, que está estudando os
compostos, afirma que eles são produzidos a partir das gorduras que
flutuam no sangue e não conseguem ser degradadas, nem armazenadas no
tecido adiposo. Elas também são causadoras de resistência à insulina. As
ceramidas também são capazes de matar as células quando seus níveis se
tornam altos demais, além de causar reações inflamatórias. Além disso,
acrescenta Scherer, a inflamação é uma das marcas da obesidade.
Ele e outros pesquisadores estão em busca dos medicamentos corretos para
limitar a atividade das enzimas utilizadas na fabricação de ceramidas.
Assim como Shulman, ele acredita que poderá mostrar que sua ideia
funciona em cobaias: "É fácil fazer isso em um rato", afirmou.
Tudo isso levantou uma questão interessante: "Todo mundo concorda que a
obesidade não é boa para a saúde, mas por que ela faz mal? Se eu colocar
25 quilos nas suas costas e pedir para você caminhar o dia todo, você
se tornaria uma pessoa muito saudável depois de um tempo", disse Virtue.
E essa, afirmou o Dr. Rudolph Leibel, da Universidade de Columbia, é a
beleza do trabalho com a lipodistrofia. Pessoas como Claire mostraram o
caminho que leva às doenças da obesidade.
"O primeiro passo no caminho da cura é saber o porquê", afirmou Leibel.
Maria Helena Araújo/jornalista/ fonte UOL Ciência e Saúde
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