O agricultor Atílio Marques da Rosa, de 76 anos, andava de moto quando
sentiu uma forte tontura e caiu na frente de casa em Braga, uma
cidadezinha de menos de 4 mil habitantes no interior do Rio Grande do
Sul.
"A tontura reapareceu depois, e os exames mostraram o
câncer", conta o filho Osmar Marques da Rosa, de 55 anos, que também é
agricultor.
Seu Atílio foi diagnosticado há um ano com um tumor
na cabeça, localizado entre o cérebro e os olhos. Por causa da doença,
já não trabalha em sua pequena propriedade, na qual produzia milho e
mandioca.
Para ele, o câncer tem origem: o contato com
agrotóxicos, produtos químicos usados para matar insetos ou plantas dos
quais o Brasil é líder mundial em consumo desde 2009.
Meu pai acusa muito esse negócio de veneno. Ele nunca usou, mas as fazendas vizinhas sempre pulverizavam a soja com avião e tudo
O noroeste gaúcho, onde seu Atílio mora, é campeão nacional no uso de
agrotóxicos, segundo um mapa do Laboratório de Geografia Agrária da USP,
elaborado a partir de dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística).
Para especialistas que lidam com o problema localmente, não há dúvidas sobre a relação entre o veneno e a doença.
"Diversos estudos apontam a relação do uso de agrotóxicos com o
câncer", diz o oncologista Fábio Franke, coordenador do Centro de Alta
Complexidade em Oncologia (Cacon) do Hospital de Caridade de Ijuí, que
atende 120 municípios da região.
Um dos principais problemas é que boa parte dos trabalhadores não segue as instruções técnicas para o manejo das substâncias.
"Nós sempre perguntamos se usam proteção, se usam equipamento. Mas
atendemos principalmente pessoas carentes. Da renda deles não sobra para
comprar máscaras, luvas, óculos. Eles ficam expostos", diz Emília
Barcelos Nascimento, voluntária da Liga Feminina de Combate ao Câncer de
Ijuí.
Anderson Scheifler, assistente social da Associação de
Apoio a Pessoas com Câncer da cidade (Aapecan), corrobora: "Temos como
relato de vida dessas pessoas um histórico de utilização excessiva de
defensivos agrícolas e, na maioria das vezes, sem uso de proteção".
'Alarmante epidemia'
Um estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) comparou o número de mortes por câncer da microrregião de Ijuí
com as registradas no Estado e no país entre 1979 e 2003 e constatou que
a taxa de mortalidade local supera tanto a gaúcha, que já é alta, como a
nacional.
De acordo com o Inca (Instituto Nacional de Câncer), o
Rio Grande do Sul é o Estado com a maior taxa de mortalidade pela
doença. Em 2013, foram 186,11 homens e 140,54 mulheres mortos para cada
grupo de 100 mil habitantes de cada sexo.
O índice é bem superior ao registrado pelos segundos colocados, Paraná (137,60 homens) e Rio de Janeiro (118,89 mulheres).
O Estado também é líder na estimativa de novos casos de câncer neste
ano, também elaborada pelo Inca - 588,45 homens e 451,89 mulheres para
cada 100 mil pessoas de cada sexo.
Em 2014, 17,5 mil pessoas morreram de câncer em terras gaúchas - no país todo, foram 195 mil óbitos.
Anualmente, cerca de 3,6 mil novos pacientes são atendidos na unidade
coordenada por Franke. Se incluídos os antigos, são 23 mil atendimentos.
Destes, 22 mil são bancados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) - os
cofres públicos desembolsam cerca de R$ 12 milhões por ano para os
tratamentos.
Segundo o oncologista, a maioria dos doentes vem da
área rural - mas o problema pode ser ainda maior, já que os malefícios
dos agrotóxicos não ocorrem apenas por exposição direta pelo trabalho no
campo, mas também via alimentação, contaminação da água e ar.
"Se esses números fossem de pacientes de dengue ou mesmo uma simples
gripe, não tenho dúvida de que a situação seria tratada como a mais
alarmante epidemia, com decreto de calamidade pública e tudo. Mas é
câncer. Há um silêncio estranho em torno dessa realidade", afirma o
promotor Nilton Kasctin do Santos, do Ministério Público da cidade de
Catuípe.
"Milhares de pessoas estão morrendo de câncer por causa dos agrotóxicos", acrescenta ele, que atua no combate aos produtos.
Procurado pela BBC Brasil, o Sindiveg (Sindicato Nacional da Indústria
de Produtos para Defesa Vegetal), que representa os fabricantes de
agrotóxicos, encaminhou o questionamento para a Andef (Associação
Nacional de Defesa Vegetal), que responde basicamente pelas mesmas
empresas.
Em nota, a Andef afirma que "toda substância química,
sintetizada em laboratório ou mesmo aquelas encontradas na natureza,
pode ser considerada um agente tóxico" e que os riscos à saúde dependem
"das condições de exposição, que incluem: a dose (quantidade de ingestão
ou contato), o tempo, a frequência etc.".
O texto afirma ainda que "o setor de defensivos agrícolas apresenta o grau de regulamentação mais rígido do mundo".
Salto no consumo
A comercialização de agrotóxicos aumentou 155% em dez anos no Brasil,
apontam os Indicadores de Desenvolvimento Sustentável (IDS), estudo
elaborado pelo IBGE no ano passado - entre 2002 e 2012, o uso saltou de
2,7 quilos por hectare para 6,9 quilos por hectare.
O número é
preocupante, especialmente porque 64,1% dos venenos aplicados em 2012
foram considerados como perigosos e 27,7% muito perigosos, aponta o
IBGE.
O Inca é um dos órgãos que se posicionam oficialmente
"contra as atuais práticas de uso de agrotóxicos no Brasil" e "ressalta
seus riscos à saúde, em especial nas causas do câncer".
Como
solução, recomenda o fim da pulverização aérea dos venenos, o fim da
isenção fiscal para a comercialização dos produtos e o incentivo à
agricultura orgânica, que não usa agrotóxico para o cultivo de
alimentos.
Márcia Sarpa Campos Mello, pesquisadora do instituto e
uma das autoras do "Dossiê Abrasco - Os impactos dos Agrotóxicos na
Saúde", ressalta que o agrotóxico mais usado no Brasil, o glifosato -
vendido com o nome de Roundup e fabricado pela Monsanto - é proibido em
toda a Europa.
Segundo ela, o glifosato está relacionado aos cânceres de mama e próstata, além de linfoma e outras mutações genéticas.
"A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que 80% dos casos de
câncer são atribuídos à exposição de agentes químicos. Se os agrotóxicos
também são esses agentes, o que já está comprovado, temos que diminuir
ou banir completamente esses produtos", defende.
A Monsanto,
entretanto, rechaça a opinião. Procurada pela BBC Brasil, a empresa
afirma que o registro do glifosato na União Europeia foi renovado por 18
meses, em junho.
A renovação, porém, não passou sem polêmica. A
intenção inicial era que a renovação fosse por 15 anos. França, Itália,
Suécia e Países Baixos foram contra. Um dos motivos é a recente
classificação da Agency for Research on Cancer (IARC), parte da
Organização Mundial da Saúde, que classificou o glifosato como
"provavelmente cancerígeno para humanos".
Três vezes mais
Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o brasileiro consome até 12 litros de agrotóxico por ano.
A bióloga Francesca Werner Ferreira, da Aipan (Associação Ijuiense de
Proteção ao Ambiente Natural) e professora da Unijuí (Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul), alerta que a
situação é ainda pior no noroeste gaúcho, onde o volume consumido pode
ser três vezes maior.
Ela conta que produtores da região têm
abusado das substâncias para secar culturas fora de época da colheita e,
assim, aumentar a produção. É o caso do trigo, que recebe doses extras
de glifosato, 2,4-D, um dos componentes do "agente laranja", usado como
arma química durante a Guerra do Vietnã, e paraquat.
Segundo o
promotor Nilton Kasctin do Santos, este último causa necrose nos rins e
morte das células do pulmão, que terminam em asfixia sem que haja a
possibilidade de aplicação de oxigênio, pois isso potencializaria os
efeitos da substância.
"Nada disso é invenção de palpiteiro, de
ambientalista de esquerda ou de algum cientista maluco que nunca tomou
sol. Também não é invenção de algum inimigo do agronegócio. Sabe quem
diz tudo isso sobre o paraquat? O próprio fabricante. Está na bula, no
rótulo", alerta o promotor.
No último ano, 52 pessoas morreram
por intoxicação por paraquat em terras gaúchas, segundo o Centro de
Informação Toxicológica do Estado.
No Brasil, 1.186 mortes foram
causadas por intoxicação por agrotóxico de 2007 a 2014, segundo a
coordenadora do Laboratório de Geografia Agrária da USP, Larissa
Bombardi.
A estimativa é que para cada registro de intoxicação
existam outros 50 casos não notificados, afirma ela. A pesquisa da
professora aponta ainda que 300 bebês de zero a um ano de idade sofreram
intoxicação no mesmo período.
A Syngenta, fabricante do
paraquat, não se manifestou sobre os casos de intoxicação e afirmou
endossar o posicionamento da Andef.
Maria Helena Araújo/jornalista/fonte UOL Ciência e Saúde
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