- Vírus encontrado em gado entra em contato com humanos por meio da água contaminada pelas fezes do animal
O surto de microcefalia registrado no Nordeste pode ter outras causas
além da contaminação do feto pela zika durante a gestação. Pesquisadores
brasileiros encontraram em amostras de fetos com microcefalia provocada
pela zika traços de um outro vírus, o BVDV, um agente que até hoje se
imaginava afetar rebanhos animais, como bovinos.
Os indícios,
embora ainda tenham de ser comprovados com testes mais específicos,
foram considerados relevantes pelos cientistas. Por precaução, eles
comunicaram o Ministério da Saúde antes mesmo da publicação do trabalho
em revista científica, em reunião de emergência feita na semana passada.
A pesquisa foi feita por integrantes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e pelo IPESQ, Instituto de Pesquisa Professor Joaquim
Amorim Neto. Diante das suspeitas, uma série de medidas foi adotada. A
Organização Mundial da Saúde (OMS) foi comunicada e ontem foi realizada
uma reunião com o Ministério da Agricultura para avaliar medidas de
proteção do gado, caso a hipótese seja mais tarde confirmada.
Um grupo do Ministério da Saúde foi destacado nesta semana para ajudar a
estudar o caso. Equipes foram enviadas a campo, na Paraíba, para tentar
buscar ligações entre as mulheres que tiveram seus embriões com
suspeita de contaminação por BVDV.
Embora intrigados com
resultados, pesquisadores que participam do estudo ouvidos pela
reportagem mostram-se cuidadosos. Eles dizem ser precipitada qualquer
conclusão.
Os trechos do BVDV foram encontrados em três
amostras, um número ainda considerado pequeno para fazer alguma
afirmação categórica. O grupo agora concentra esforços para fazer o
sequenciamento do vírus. Uma tarefa que é cara. Justamente por isso,
buscaram auxílio do Ministério da Saúde.
"Essa é uma peça
importante dentro desse quebra-cabeças. Nunca foi descartada a
possibilidade de que, além do zika, outro vírus estivesse relacionado ao
aumento de casos de bebês com problemas neurológicos", disse um
integrante da força-tarefa destacada para avaliar o caso, que atua em
Pernambuco.
Vírus da família da zika
O BVDV é um vírus presente no rebanho de vários países, incluindo o
Brasil. Da mesma família da zika (Flaviviridae), ele causa no gado uma
série de doenças, como diarreias e problemas respiratórios. O que chama
mais a atenção, no entanto, é a grande quantidade de casos de abortos e
de más-formações provocadas por esses vírus no gado. Entre os problemas
encontrados, está a artrogripose, uma síndrome que provoca má-formação
em articulações, já identificada em alguns bebês com microcefalia.
Foi justamente essa semelhança na forma do ataque do vírus na formação
do feto de gado e dos bebês com microcefalia associada ao zika que
despertou o interesse dos pesquisadores. Assim como acontece com bebês, a
literatura mostra que o impacto do BVDV na formação do feto bovino muda
de acordo com o período de infecção.
"Abortos e más-formações
são mais comuns no primeiro trimestre da gestação dos bovinos", afirmou o
professor do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da
Universidade Federal de Santa Maria, Eduardo Flores. Assim como de
humanos, o período de gestação no gado é de 9 meses.
O professor
afirma que, embora muito presente no rebanho brasileiro, até hoje não
houve relato sobre a transmissão do BVDV para seres humanos. Também não
há registros sobre contaminação do vírus no meio ambiente.
Uma
das hipóteses de pesquisadores é de que o fato da zika e o BVDV serem da
mesma família possa aumentar a possibilidade de interação.
"Talvez isso ajude a explicar a forma como o zika rompe a barreira
placentária e ataca o feto", diz um representante do governo de
Pernambuco.
Essa interação poderia também ajudar a explicar um
fato que intriga autoridades sanitárias e a comunidade científica em
geral: por que algumas regiões do Nordeste brasileiro foram muito mais
afetadas pela síndrome provocada nos bebês pelo zika do que outros
Estados ou outros países?
A resposta ouvida até agora era de que
a epidemia de zika em outras regiões do país é muito recente e que, por
isso, seria preciso esperar alguns meses até que bebês com a síndrome
congênita começassem a nascer.
"O tempo está passando e a
epidemia de grandes proporções esperada no Sudeste não está
acontecendo", afirmou o representante. O último boletim do Ministério da
Saúde sobre a microcefalia mostra que há 1.417 casos confirmados no
Nordeste e 106 no Sudeste.
Governo diz que medidas são precaução
O secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Alexandre
Santos, afirmou que as medidas adotadas até o momento sobre o vírus BVDV
são feitas por precaução. "Existem indícios. Técnicos foram enviados
para ajudar na investigação. A notificação da OMS faz parte do
regulamento sanitário."
Um dos pesquisadores envolvidos no
estudo disse que a tarefa, neste momento, é identificar o vírus inteiro
do BVDV. "Encontramos trechos de fragmento de genoma. É preciso mais.
Seria uma leviandade afirmar de forma categórica que o BVDV está
associado à síndrome das crianças."
Casos de infecção do gado
provocada pela Diarreia Viral Bovina (BVDV) são identificados no Brasil
desde a década de 60. Estudos mostram que o vírus é encontrado em várias
partes do país e afeta, principalmente, o gado leiteiro.
"Não é
uma doença de notificação compulsória. A vacinação também não é feita
de forma regular. O fato é que há muitos rebanhos contaminados", afirma o
professor do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da
Universidade Federal de Santa Maria Eduardo Flores.
A
contaminação pelo vírus pode acontecer por meio das secreções (como
durante a alimentação no cocho) e pelo sêmen. O ponto-chave para o
controle da doença está na identificação e no controle de animais
portadores do vírus, mas que não apresentam sintomas. "Esses bezerros
geralmente são contaminados na última fase da gestação. Eles
clinicamente são normais, mas excretam vírus continuamente."
Rebanhos com grande circulação do vírus, disse o professor, trazem
grandes perdas reprodutivas. "Abortos, natimortos e más-formações",
conta.
Água contaminada
A dúvida de pesquisadores é
por que um vírus presente há tanto tempo no país e em outras partes do
mundo agora está sendo associado a uma doença tão grave? Há várias
hipóteses. Embora até hoje não haja registros de contaminações
ambientais, uma das possibilidades avaliadas é de que o vírus entre em
contato com humanos por meio da água contaminada pelas fezes do animal.
"A região afetada sofre com desabastecimento de água.
Poços
geralmente estão próximos de locais onde o gado pasta", disse o
pesquisador. Há também a possibilidade do consumo de leite cru. Tais
fatores de risco, no entanto, sempre existiram.
"A diferença é
que agora entra em cena a zika, que poderia de alguma forma se associar
com BVDV", diz um integrante do Ministério da Saúde. "Mas são hipóteses.
São necessários ainda estudos para comprovar alguma relação."
Santos afirma que, no momento, não é preciso adotar nenhum cuidado
extra. "São as recomendações de sempre: comer carne cozida, usar leite
pasteurizado."
Maria Helena Araújo/jornalista/fonte/UOL Notícias Ciência e Saúde
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