Lisa Day foi diagnosticada com diabetes tipo 1 quando tinha 14 anos de idade. Por isso, precisava de injeções diárias de insulina e tinha de cuidar da dieta. Em 12 de setembro do ano passado, porém, ela morreu. Depois de sofrer anos com a diabulimia.
O termo, que ainda não foi reconhecido pelo mundo médico, refere-se aos diabéticos que deliberadamente se injetam com pouca insulina, com a intenção de perder peso.
Os efeitos do descompasso no uso da medicação podem ser devastadores: cegueira, problemas renais, perda de cabelo e, como no caso de Lisa, morte precoce.
Katie Edwards, a irmã mais velha de Lisa, cedeu à BBC trechos do diário escrito pela caçula, para alertar a respeito desse distúrbio pouco conhecido
1º de janeiro de 2002 "Tenho que me injetar (insulina) daqui a pouco. Vou ligar para o Sam à
noite para que nos encontremos amanhã. Acabo de me forçar a vomitar duas
vezes".Enquanto vai passando as páginas do diário, Katie
descreve Lisa. "Ela era minha irmãzinha. Divertida, tinha muitos amigos.
Amava a vida, mas dava para notar que algo no fundo parecia
perturbá-la. Era como se tivesse uma sombra triste perseguindo-a".
13 de fevereiro de 2002 "Um dia sem uniforme na escola. Sinto-me tão GORDA. Todo mundo estava
bem hoje, menos eu. Vomitei minha comida hoje. Preciso fazer rapidamente
meu dever para a aula de artes".
5 de março de 2002 "Estou muito contente e me sinto muito bem. Não como chocolate faz 4
dias e 6kg. Mike me enviou uma mensagem nesta noite e tudo está bem.
Preciso aprender a não ficar vermelha (de vergonha). Estou pesando 55,8
kg.". "Acho que sou bulímica". Katie explica que não se
deu conta de quão mal as coisas estavam com a irmã. Foi apenas
recentemente que ela e mãe encontraram o diário. "Não sei ao
certo o que começou primeiro: a diabetes ou os problemas de
alimentação", diz Katie à BBC, enquanto vê fotos de Lisa. "Mas
sei que, antes de ser diabética, Lisa era completamente feliz. Comia o
que quería e não tinha problema algum com comida. Quando a
diagnosticaram, pediram que escrevesse um diário em que registrasse o
que comia, bem como os níveis de açúcar em seu sangue".
14 de março de 2002 "Estou me obrigando a vomitar, porque caso contrário me sinto culpada pelo que comi".
15 de março de 2002"Me sinto tão gorda. Me odeio. Amanhã começo a trabalhar em um petshop. Há uma discoteca no FC amanhã. Vou com Holly".
18 de março de 2002"Tive uma 'hipo' (hipoglicemia) terrível na hora do almoço. Estava sentada com Mike e sua namorada. Não acho que ele ache que eu estou em boa forma".
Quase todas as pessoas que têm diabetes tipo 1 sofrem de "hipo" en algum momento. A hipoglicemia ocorre quando o nível de glicose no sangue se reduz demais. Entre as pessoas que não sofrem de diabetes, a quantidade correta é produzida no momento indicado para que os níveis de glicose não subam ou baixem demais.
Mas, em quem tem diabetes tipo 1, a insulina, a comida e a atividade física às vezes não estão bem balanceadas, e os níveis de glicose são afetados.
30 de abril
"Fui dançar na escola hoje. E há tempo não provoco vômito! Vi Mike outra vez hoje. (Foi) Um dia muito chato".
Naquele momento, Lisa não sabia que tinha diabulimia.
"Lisa foi mudando com a diabetes", diz sua irmã. "Os diabéticos precisam controlar muito o que comem, e acho que Lisa acabou se preocupando demais".
"Ela chegou ao ponto de não comer nenhum molho, nem manteiga. Quando comia, era só a metade de uma batata assada ou peixe cozido. Ela perdeu um bocado de peso".
"Lembro-me de uma vez que mamãe lhe deu um sorvete e ela estava orgulhosa de tê-lo comido. Mas sentiu-se mal, porque o estômago rejeitou o sorvete, já que Lisa não vinha comendo o suficiente", diz a irmã.
29 de maio de 2002
"Odeio ser diabética. Não posso comer quando quero porque não quero ganhar mais peso".
Katie se lembra de como Lisa foi mudando seus hábitos alimentares à medida que o tempo passava.
"No princípio, ela era esperta - não comia muito -, mas se deu conta de que, se não tomasse insulina, perderia peso de qualquer jeito. E poderia comer as coisas que não deveria".
15 de agosto de 2002
"Tenho feito exercícios para o estômago e o bumbum, indo à academia todos os dias. Não posso fazer mais, ou vou morrer de esgotamento, mas de repente seria bom, porque estou tão gorda".
"Melhor é queimar (as calorias do) meu jantar fazendo polichinelos. Por favor, me deixem morrer".
Neste ponto de 2002, a família de Lisa não tinha se dado conta de quão ruim a situação estava.
"Os diabéticos estão a cargo de seus próprios cuidados. Eles sabem de quanta insulina precisam", explica Kate.
"Minha família e eu presumimos que ela sabia o que estava fazendo. Não havia nada que pudéssemos fazer. Ela tinha sua vida nas próprias mãos".
12 de novembro de 2002
"Não fui à escola hoje. Estou escrevendo este diário há um ano".
"Durante o ano pasado fiquei bulímica, mas estou melhorando".
"Perdi 9 quilos. Agora peso 47 kg".
4 de dezembro de 2002
"Joe e Tom mandaram mensagens. Me disseram que estou em boa forma. BELEZA, minha perda de peso está dando resultados".
Katie conta que sua irmã adorava fazer bolos e pratos indianos e que os comia sem problemas, pois não tomava insulina.
"Com o tempo, ela se deu conta de que podia aumentar o açúcar em seu sangue, não tomar insulina, comer o que queria e perder peso de todo o jeito. Ela não estava se entupindo de sobremesas ou refrigerantes, mas quando se tratava de comer, comia literalmente o que queria".
No entanto, isso teve efeitos colaterais terríveis, segundo Katie, como problemas estomacais e nos pés.
"Está vendo que suas bochechas estão bem rosadas nessa foto (abaixo). Esse era um dos sinais de que ela não estava tomando a insulina".
"Ela desenvolveu um problema estomacal e, quando comia, seu estômago não processava o alimento. Tinha doras terríveis e foi internada algumas vezes entre janeiro e abril do ano passado. Os médicos disseram que isso foi causado pelo uso incorreto da insulina, e isso a deprimiu".
A anotação abaixo foi uma das últimas que Lisa fez no diário.
23 de junho de 2004
"Sinto que vou conseguir usar meu vestido vermelho outra vez e perder de seis a nove quilos até setembro".
Doreen, a mãe de Lisa, ainda guarda ou vestido pelo qual a filha tinha uma obessão.
"Lisa disse milhões de vezes que o vestido era uma meta para ela, o que é muito triste. Ela morria de vontade de voltar a vesti-lo".
Nos anos seguintes, segundo Katie, Lisa viveu uma rotina de internações. "Mesmo quando ela sorria, sabíamos que tinha algo acontecendo. Eu sabia que ela tinha que tomar insulina, mas não o quão dedicada ela precisava ser".
"E essa coisa de diabulimia, eu não sabia que outras pessoas também tinham. Isso só veio à tona depois que ela morreu. É muito triste triste: se Lisa tivesse recebido ajuda 10 anos atrás, ela poderia ainda estar conosco, porque teria se cuidado mais".
Organizações como a britânica DWED (Diabéticos com Transtornos Alimentares) estão fazendo campanha para que a diabulimia seja reconhecida oficialmente como um transtorno alimentar e psicológico.
Estima-se um terço das jovens mulheres diagnosticadas com diabetes tipo 1 sofra de distúrbios alimentares ou se incomode com seu próprio peso.
"Ninguém sabe o quanto esse problema é grave nem como diagnosticá-lo", diz a professora Khalida Ismail, que lidera a maior clínica de diabetes e distúrbios mentais britânico, na Universidade King´s College.
Na última segunda-feira, a morte da Lisa completou um ano.
"Foi a semana mais horrível da minha vida", relembra Katie.
Maria Helena Araújo/jornalista/fonte UOL Ciência e Saúde
Nenhum comentário:
Postar um comentário